A sociedade assiste, assombrada, a uma escalada de crimes ocorridos no âmbito de famílias de classe média.
Transformou-se o crime familiar em pauta ordinária das editorias de polícia.
O inimigo já não está somente nas esquinas e vielas da cidade sem rosto, mas dentro dos lares.
Mudam os personagens, mas as histórias de famílias destruídas pelo ódio e pelas drogas se repetem.
A violência não se oculta sob a máscara anônima da marginalidade. Surpreendentemente, vítimas e criminosos assinam o mesmo sobrenome e estão unidos pela indissolubilidade do DNA.
A multiplicação dos crimes em família tem deixado a opinião pública em estado de choque.
Paira no ar a mesma pergunta que Fellini pôs na boca de um dos personagens do seu filme Ensaio de Orquestra, quando, ao contemplar o caos que tomara conta dos músicos depois da destituição do maestro, pergunta, perplexo: “Como é que chegamos a isto?”
A interrogação está subjacente nas reações de todos nós, que, atordoados, tentamos encontrar resposta para a escalada de maldade que tomou conta do cotidiano.
A tragédia que tem fustigado algumas famílias aparece tingida por marcas típicas da atual crônica policial: uso de drogas, dissolução da família e crise da autoridade.
Ponto a serem refletidos:
O esgarçamento das relações familiares. Há exceções, é claro.
Desequilíbrios e patologias independem da boa vontade de pais e filhos.
A regra, no entanto, indica que o crime hediondo costuma ser o dramático corolário de um silogismo que se fundamenta nas premissas do egoísmo e da ausência, sobretudo paterna.
A desestruturação da família está, de fato, na raiz da tragédia
Se a crescente falange de jovens criminosos deixa algo claro, é o fato de que cada vez mais pais não conhecem os seus filhos (e filhos também não se interessam por seus pais e avós).
Na falta do carinho e do diálogo, os jovens crescem sem referencias morais e âncoras afetivas.
Recebem boas mesadas, carros e viagens. Mas, certamente, trocariam tudo isso pela presença dos pais. Sua resposta é uma explosiva combinação de revolta e ódio. Psiquiatras, inúmeros, tentam encontrar explicações nos meandros das patologias mentais.
Mas nem sempre. Independentemente dos possíveis surtos psicóticos, causa imediata de crimes brutais, a grande doença dos nossos dias tem um nome menos técnico, mas mais cruel: a desumanização das relações familiares.
O crime intra e extra lar medra no terreno fertilizado pela ausência. O uso das drogas, verdadeiro estopim da loucura final, é, frequentemente, o resultado da falência da família.
A ausência de limites e a crise da autoridade estão na outra ponta do problema. Transformou-se o prazer em regra absoluta.
O sacrifício, a renúncia e o sofrimento, realidades inerentes ao cotidiano de todos nós, foram excomungados pelo marketing do consumismo alucinado.
Decretada a demissão dos limites e suprimido qualquer assomo de autoridade (dos pais, da escola e do Estado), sobra a barbárie. A responsabilidade, consequência direta e imediata dos atos humanos, simplesmente evaporou.
Em todos os campos. O político ladrão e aético não vai para a cadeia. Renuncia ao mandato. O delinquente juvenil não responde por seus atos. É “de menor”.
Certas teorias no campo da educação, cultivadas em escolas que fizeram uma opção preferencial pela permissividade, também estão apresentando um amargo resultado.
Uma legião de desajustados, crescida à sombra do dogma da educação não traumatizante, está mostrando a sua face perversa. Gastamos a maior parte da nossa energia no combate à vergonha e à culpa, pretendendo que as pessoas se sentissem bem consigo mesmas.”
O saldo é uma geração desorientada e vazia. A despersonalização da culpa e a certeza da impunidade têm gerado uma onda de superpredadores. O inchaço do ego e o emagrecimento da solidariedade estão na origem de inúmeras patologias. A forja do caráter, compatível com o clima de verdadeira liberdade, começa a ganhar contornos de solução válida.
A pena é que tenhamos de pagar um preço tão alto para redescobrir o óbvio.
O pragmatismo e a irresponsabilidade de alguns setores do mundo do entretenimento estão na outra ponta do problema.
A valorização do sucesso sem limites éticos, a apresentação de desvios comportamentais num clima de normalidade e a consagração da impunidade têm colaborado para o aparecimento de mauricinhos do crime.
Apoiados numa manipulação do conceito de liberdade artística e de expressão, alguns programas de TV crescem à sombra da exploração das paixões humanas.
As análises dos especialistas e as políticas públicas esgrimem inúmeros argumentos politicamente corretos. Fala-se de tudo. Menos da crise da família e da demissão da autoridade.
Mas o nó está aí.
Se não tivermos a coragem e a firmeza de desatá-lo, assistiremos a uma espiral de crueldade sem precedentes.
É só uma questão de tempo.
Já estamos ouvindo as primeiras explosões do barril de pólvora.
O horror dos lares destruídos pelo ódio não está nas telas dos cinemas.
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