A salvação acontece com base nas entranhas da história da humanidade.
Deus, pela encarnação que culmina em Jesus de Nazaré, assume as entranhas humanas para salvar todos e tudo. Infelizmente já faz parte do senso comum que salvação se refere apenas à “alma”. Perdeu-se a relação do corpo com a salvação. Diante disso é bom recordar que a palavra “salvação”, no seu sentido original, quer dizer livrar o ser humano de algum mal físico, moral ou político, ou de algum cataclismo cósmico; isso supõe resgate da integridade.
Com referência ao acontecimento Jesus vem resgatar a integridade do ser humano o que significa restabelecer sua relação inata com Deus, com os outros, com toda a criação e consigo mesmo. Não podemos esquecer que o credo cristão afirma a convicção na ressurreição da “carne”, não apenas da “alma”. Salvação é um dos efeitos mais importantes do acontecimento Cristo, pelo menos na mentalidade do autor do Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos. Lucas é o único dos evangelistas sinóticos a chamar Jesus de “Salvador”.
O melhor resumo que mostra o que é salvação é: “O filho do Homem veio buscar o que estava perdido e salvá-lo” (Lc 19,10).
Não podemos continuar pensando, segundo o senso comum, que salvação se refere somente a algo pós-morte e que não tem nada a ver com libertações na história. Na Bíblia, as categorias salvação e libertação são “equivalentes” e complementares, mesmo que alguns textos possam enfatizar mais a ideia de salvação, e outros, mais a ideia de libertação.
Por exemplo, etimologicamente o nome Josué significa “o Senhor é libertação-salvação” (Nm 11,28); Josué é a versão hebraica do nome de Jesus. Este é versão aramaica.
Logo, etimologicamente, Jesus é o novo Josué, aquele que liberta e salva, em um processo interdependente. Josué conduziu o povo na conquista da terra prometida. Jesus conduz o povo para a chegada do Reino de Deus no mundo.
Outro exemplo: o nome Oséias significa libertação-salvação (Nm 13,8) — o profeta Oséias combateu com veemência a idolatria, libertando e salvando o povo.
Libertação-salvação faz parte do campo semântico dos verbos libertar, salvar, sarar, curar, resgatar, perdoar, reerguer, redimir, integrar, recuperar, incluir, apoiar e outros similares. Isso indica a inter-relação existente entre libertar e salvar: são duas faces da mesma medalha; inseparáveis como carne e unha. “Salvação” que não implica libertação real, concreta e corporal das pessoas é pseudo salvação.
Lucas não quer, em momento algum, espiritualizar a proposta do Evangelho de Jesus Cristo, mas inseri-la nos processos orgânicos de libertação. A salvação que Lucas defende não é aparente, como diz o povo: “Peruca em cabeça de careca”.
A salvação universal se estende a tudo e a todos, não porque o povo judeu a recusou, mas porque está no plano salvífico de Deus favorecer toda a humanidade.
O plano salvífico, segundo Lucas, começa com o movimento de Jesus Cristo, no evangelho, e continua nos Atos dos Apóstolos sob a ação do Espírito prolongando-se nas Igrejas pelo mundo afora. No plano teológico da obra de Lucas, o tempo da promessa (Primeiro Testamento), o tempo de Jesus (evangelho) e o tempo das Igrejas (Atos dos Apóstolos) apresentam uma visão unitária de um único projeto de salvação pensado pelo Deus da Bíblia, para o ser humano de todos os tempos e realizado em Jesus por meio do dom e da presença do Espírito Santo nas comunidades cristãs.
A cristologia de Lucas revela Jesus como eminentemente compassivo-misericordioso (Lc 7,13; 10,33; 15,20), Salvador de todos (Lc 2,32), curador de todas as doenças (Lc 19,5; 15,2); acolhedor dos samaritanos (Lc 10,29-37; 17,11-19); acolhedor amoroso das mulheres (Lc 8,2-3; 23,49) e praticamente da “comunhão de mesa” com pecadores ao sentar-se à mesa e comer junto com eles (Lc 5,29-30; 15,2; 19,7).
O templo e a cidade de Jerusalém como lugares exclusivos de salvação ou revelação são superados. O povo de Israel, segundo Lucas, não é mais o “povo eleito” por excelência. Basta perceber a prioridade que Lucas dá aos samaritanos e aos gentios. Lucas nos alerta que o lugar por excelência da revelação de Deus é a pessoa de Jesus.
O Menino Jesus é reconhecido como “bendito” (Lc 1,42); na sua humanidade “visita” o seu povo e toda a humanidade (Lc 1, 68.78; 3,6). Deus, em Jesus, visita o povo e dá início, assim, a um tempo de salvação, paz, reconciliação e perdão.
Conzelmann, um estudioso do evangelho de Lucas, afirma que em Jesus e com ele, o tempo chegou ao seu centro. Por isso ele pôs em um dos seus livros sobre Lucas o seguinte título: O centro do tempo. Os argumentos que sustentam essa tese se apoiam sobre a ênfase dada à palavra hoje, que aparece doze vezes nesse evangelho.
É claro que a palavra “hoje” não tem o mesmo sentido em todos esses versículos, mas o fato de aparecer tantas vezes demonstra como o Jesus apresentado por Lucas valoriza o hoje, o aqui e agora. “Felizes vós, que agora tendes fome (e chorais), porque sereis saciados (e haveis de rir)” (Lc 6,21). “Hoje se cumpre essa passagem da Escritura (Lc 4,21)”.
Para entender bem essa afirmação, devemos recordar que, para o povo judeu, toda vez que se lia a Bíblia Deus estava falando e manifestando-se. A Palavra para o mundo semita é viva e eficaz (Is 55,10-11). Pela Palavra, Deus nos visita e devemos ter sensibilidade para captar sua mensagem.
O tempo de Deus é o “hoje” da história (Lc 4,21). Para Lucas a prática é decisiva. Isto é comprovado na obra lucana com expressões como: “Façam coisas para provar que vocês se converteram...” (Lc 3,8a); “As multidões, alguns cobradores de impostos, alguns soldados... perguntaram a João Batista: ‘O que devemos fazer?’” (Lc 3,10.12.14). Um escriba pergunta a Jesus: “O que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” (Lc 10,25) e depois de contar o “episódio-parábola” do Bom Samaritano, Jesus responde dizendo: “Vá, e faça a mesma coisa” (Lc 10,37). Muitos outros textos podem ser evocados para respaldar a conclusão de que Lucas dá uma grande prioridade à ação. O primeiro versículo dos Atos dos Apóstolos traz a seguinte frase: “... tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar”. A prática é recordada antes do ensinamento, o que quer dizer que acima da ortodoxia está a ortopráxis. Mais importante do que ter uma “opinião certa” é ter uma prática correta, libertadora. Por aqui entrevemos a perspectiva universal da teologia lucana.
Lucas quer dizer que uma das grandes características das primeiras comunidades é que eram comunidades de ação, de prática, de testemunho. Não se trata de qualquer tipo de ação, mas de ação solidária e libertadora.Lucas apresenta as seguintes condições para seguir Jesus: viver em pobreza radical, não temer repressões, não fazer discriminação racial ou cultural , acolher preferencialmente os pobres.
Ser discípulo significa seguir os passos de Jesus, acompanhá-lo rumo a “Jerusalém”, onde cumprirá o seu “destino”, o seu “êxodo” rumo ao Pai. Ser discípulo de Cristo inclui não somente a aceitação do ensinamento do Mestre, mas também uma identificação pessoal com o estilo de vida de Jesus e com seu compromisso com os pobres mediante o martírio como caminho para a ressurreição. Jesus vive a espiritualidade do conflito, apesar do caminho da cruz o clima predominante é de entusiasmo e alegria, cultivando assim a serenidade e a paz interior diante das “tempestades”.
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